Wednesday, April 13, 2016

Tempo(s)



O tempo corre
Escorre
Discorre
Entre as gotinhas de chuva
No meio das tempestades
Em dias serenos
Tu estás
Não estás
Chegaste
Partiste
Correste
Fugiste
Acertaste
Duvidaste
Voltaste
Encontro-te
Desencontro-te
Espero
Desespero
Vislumbro a tua silhueta
Como areia numa ampulheta
Que se escapa sem volta atrás.

in 
Somos Instantes, Colectânea  
O Percurso das Palavras
Papel d'Arroz Editora



Tuesday, April 12, 2016

Ao acaso



Ao acaso por aí,  subo as escadinhas e atravesso a ponte pedonal
Leio as confissões de amor escritas sobre o tabuleiro da ponte
E as declarações de guerra no mesmo lugar
Algumas gravadas há tempos nem o tempo nem a chuva nem o sol
as conseguiu ainda apagar
o pastor encostou-se à parede da casa em ruínas a descansar a sentir
o calor do astro-rei e as ovelhas andam por ali como num presépio a destempo
e as cabras treparam à encosta, passa uma mulher, o cão vem a correr a ladrar
as almas dos fantasmas a viver nas casas esventradas embalam os ramos dos choupos
 à noite, junto ao regato, juntam ao cantarolar fresco das águas os murmúrios roucos
e afastam da casa sem telhado, sem portas nem janelas os demónios loucos
o comboio parte às horas em ponto, passa sob o viaduto no começo da viagem
ao longe, toca o sino baladas saudosas numa qualquer igreja perdida no monte
se o lago continuar sereno, um espelho límpido, as árvores a reflectir
os troncos, os ramos, as folhas de pernas para o ar, a imagem
das casas de telhado ao contrário, as pessoas a caminhar de cabeça invertida
se o comboio seguir sobre os carris sem contratempos
se o sol brilhar sempre, mesmo em dias de nevoeiro
se todos os dias acordar ao teu lado, beijar-te como se cada beijo fosse o primeiro
se o mundo dentro de nós, fora de nós viver em equilíbrio e harmonia
cada dia será quase perfeito, e o dia seguinte será certamente melhor e outro dia
melhor ainda, e contigo ao meu lado, o céu é azul mesmo cinzento e o mar é belo,
sempre que o barco nos deixe em terra firme.


in 
Somos Instantes, Colectânea  
O Percurso das Palavras
Papel d'Arroz Editora








Saturday, April 09, 2016

Saudade



A lua inundou o céu, vermelha, majestosa, cheia de contos fantásticos e lendas.
O homem acordou o gato, embrulhou-se na manta quente e macia.
Instalou-se na varanda, sozinho e quieto, afagando, sem cessar,  a cabeça do gato
Que se quedou ronronando, aconchegado ao peito do dono solitário.
Adormeceram ambos, ao luar de Setembro, como se fosse noite em Janeiro.
O homem sonhou o corpo da mulher, descansado, desejado,  ali ao lado,
Envolveu-a num abraço, apertou-a contra si, fortemente,
Estremeceu, adivinhando que podia um dia perdê-la para sempre.
Ainda hoje acorda todas as manhãs e espera encontrá-la junto a si.
No café, o dono vê-o a olhar fixamente a primeira página do jornal diário
Sem nunca passar dali: aguarda que a mulher passe as folhas devagar,
 Não acontecerá nunca mais, mas o homem vive ainda essa fantasia.
Coloca dois pratos na mesa, escolhe a toalha que ela preferia,
 E chora,  dolorosamente, quando se dá conta da ausência prolongada.
O homem despertou manhã já entrada, os pés frios, a alma gelada.
O gato escapuliu-se-lhe do colo e entrou casa dentro sorrateiramente.


in 
Somos Instantes, Colectânea  
Papel d'Arroz Editora




Friday, April 08, 2016

Fantasiando



Deslizam as gotas da chuva devagar
Contra o vidro transparente
Parecem lágrimas por chorar,
Rosto colado à janela à tua espera.
Passa o tempo e tu ausente,
Deito-me na cama vazia
Na esperança de uma quimera,
Sonho ou vivo uma fantasia,
Dou voltas, enrolo-me em mim,
Tropeço no sono, acordo outra vez,
Durmo aos repelões, a porta fechada,
Na ânsia da luz da madrugada.
Surge a manhã, doída, dorida, sem ti.
Talvez chegues mais logo, talvez,
Quando eu tiver partido assim
Desfeito o engano, a ilusão,
Deixando pelos cantos ali
Perdido um retalho do coração.
Talvez chegues mais tarde, talvez…
Quando, um dia, envelhecer
Vou lembrar este preciso instante
Em que nos perdemos um do outro
E no jardim, deixou de chover:
Escorrem sobre as pétalas de rosa
Gotículas de água como pérolas
Sobre seda!

in 
Somos Instantes, Colectânea  
Papel d'Arroz Editora