Sunday, December 06, 2015

caminho sobre a terra dos meus avós
e sinto a terra sumir-se debaixo dos pés.

sento-me, à sombra, nos degraus à porta de casa
numa tarde quente de Maio, podia ser Agosto.

rareiam as palavras, o caminho vazio,
só chegam ecos de longe na tarde de calor.

a estrada engoliu um caminho que nunca existiu,
a eira reduzida a umas lajes tristonhas.

o carreiro antigo anda ali às voltas para se encontrar
e os tanques na velha fonte  agonizam entre paredes.

à noite, pela janela aberta, entra o silêncio, o sino a rezar,
os cães a ladrar e as luzes reflectem-se douradas, no rio.

voltamos à casa, esperamos ouvir lá dentro a avó,
mas não cheira a café, nem a broa, nem o forno está aceso.

olhamos o fim do caminho, a qualquer momento, o avô
pode aparecer, chapéu na cabeça, enxada ao ombro.

desviamos o olhar um instante, e voltamos a lançar os olhos
lá para o fim da ruela, pode ser que as ovelhas precedam o avô.

pode ser que ainda chegue a tempo da noite estrelada
e que nos sentemos com ele  muito quietas a olhar o céu.

pode ser que, entre todos aqueles pontinhos brilhantes,
na noite escura, diante dos dedos do avô, avistemos a estrela polar.


in POEMÁRIO 2016
Pastelaria Studios





Saturday, May 23, 2015

Loucura

Dizem que, para o fim, enlouqueceste,

se é que já não andavas louca, sem tino,

há muito.

Só tu para te levantares, enfeitiçada,  naquela manhã

de tempestade entre chuva gelada e vento desnorteado

e ires abraçar nos teus braços e nas tuas palavras,

em segredo, com um grande braçado de rosas,

outra louca, uma louca por amor.

Ainda cheira a rosas polvilhadas a preceito com gotas de chuva fria.








Sunday, April 12, 2015

Memórias

Uma palavra, uma imagem
corre voraz o mundo
à velocidade da luz
traz paz ou amor profundo
agora anjo de asas puras
logo obra do diabo
de origens obscuras
chega-nos sem contar
com a brusquidão
de uma bofetada
de um azarado trovão
o cérebro confuso
as sinapses em paragem
sem saberem que pensar
um baque no coração
no estômago uma azia
assalta-nos sem parar
um vómito, uma agonia.

Há tanto tempo não te via
vi-te depois da passadeira
quase ao virar da esquina
atitude sempre sossegada;
foste embora de sorriso triste
como quem se despedia.
Quando voltei a ver-te
Tinhas o rosto parado
Pespegado num folheto
Banal de uma  funerária
Soltei um grito de espanto
Ali estavas quieta, apagada
na lista arbitrária
a que ninguém escapa.

Vai uma pessoa pelo caminho
um bocado à toa
cruza-se com uma pessoa
que não vê há tempos
ou vê todos os dias
e sem mais nem quê
a pessoa apaga-se.

Abrigo-me no sono
cortado a meio
no meio da noite;
pesadelos aberrantes,
estridentes sobressaltos
espezinham os sonhos,
arranham o pensamento
até que a luz da madrugada
espante os espíritos errantes,
os fantasmas desconcertados,
abram essas janelas devagar
de par em par, deixem lá
a música namorar as palavras
dos poemas vagabundos,
deixem lá a memória resistir
ao esquecimento.







Thursday, March 12, 2015

Fugaz

Preciso de terras, lugares,
pessoas concretas
para dissipar as incertezas
as dúvidas discretas.

Busco confirmação
só para saber que não sonhei
nem inventei nada:

Aquela praia era uma baía,
uma concha, o paraíso,
reencontro na lembrança,
uns grãos de areia fina,
na realidade encontro
um livro minúsculo,
umas fotos antigas
o sabor a maresia
e as cores variadas
das ervilhas-de-cheiro.

Preciso de saber: não sonhei,
Não inventei nada.

Naquela praceta
havia um fontanário
ali perto da porta vermelha,
hoje é verde-esperança.

Naquele outro sítio
é um jardim em frente
ao colégio misto,
ainda lá está, mas eu insisto
em ver. Não sonhei
não inventei nada.
E a Judite ainda lá vive
contudo sem trança.

Além,

Fecho os olhos:
A voz da avó ecoa
Por aquelas quebradas
E, dentro do forno,
Acabada de cozer: a broa.
De manhã, ouço a colher
A mexer o café
No caçoilo de barro.
Nem quero abrir os olhos
Que é tudo uma ilusão
que se some de repente
se me esquecer.

Antes de abrir os olhos,
quero ver ainda
o avô de enxada
às costas, a sorrir
ao fundo do caminho.
E a avó, de lenço
de ramagens na cabeça
sacode o avental
junto ao portão.
Abro os olhos devagarinho
e o avô ajeita o chapéu,
como quem nos abençoa,
a avó de lenço na cabeça
a acenar, a chamar,
a desaparecer, a esfumar-se.
Abro os olhos sem pressa,
contra o sol que me encandeia,
me atordoa.
Já não vejo nada,
não vejo ninguém.
Preciso de terras, lugares,
de chamar à vida pessoas concretas,
que a nossa vida só faz sentido,
enquanto eu me lembrar.




Thursday, March 05, 2015

O pássaro

Uma gaiola
Um pássaro colorido dentro
A porta fechada.

A mulher cuidadosamente
Protegeu
o pássaro do pó e dos ruídos
E colocou
a gaiola na varanda,
A gaiola com pássaro colorido dentro
E a porta fechada.

Um dia depois, na varanda alta,
Olhou e viu a gaiola,
A gaiola e a porta aberta.
Saltou-lhe do peito o coração,
Abriu a boca de aflição,
Num segundo fugaz, pensou:
Lá fugiu o pássaro.

Reparou melhor, em alerta,
suspirou:
o pássaro colorido
dentro da gaiola,
a porta aberta.


Habituadas
à prisão, as asas
atrofiadas
nem perceberam a liberdade
em aberto naquela porta escancarada.








Tuesday, February 10, 2015

Insónia-memória

Dentro da insónia,
um emaranhado de videiras
Enredam nos sonhos
Um conjunto de nós;
Na casa antiga dos avós
Palavras adormecidas
Coladas nas paredes
Em cartas de amor
E fotos desamparadas
 numa triste nostalgia
em aparente vigia,
os móveis esquecidos
as camas paradas,
vidas ultrapassadas.
Os caminhos despercebem-se
Atolados em sedimentos
Acumulados nos tempos
A correr sem parar.
Uma mesa num canto
Espavorida de espanto
Acompanha o ranger
De um soalho carcomido
Sem passos a correr.
Lá fora, um malmequer
(Ou será bem-me-quer?).
Nos ouvidos, um zumbido
Do vento a esbracejar
Como um búzio perdido
Afastado do mar.


Saturday, January 31, 2015

O pastor

O pastor
vigia o rebanho,
as ovelhas escolhem as ervas menos tisnadas
pelas últimas geadas
e as cabras saltitam ao sol
só a cabra coxa se arrasta vencida pela dor.

O pastor
senta-se, agarrado
ao bordão encostado
à parede descascada
da casa desabitada,
uns buracos abertos
onde foram antigamente
portas e janelas.

O pastor
abriga-se, uma figura
estampada na parede,
à espera que o tempo passe
sem que o vento estilhace
a paz do momento.



Tuesday, January 27, 2015

Os tempos

Antes de a chuva chegar
a roupa colorida
baloiça divertida
nos estendais
camisas e camisolas
braços a dançar
e cabeças de pernas para o ar
e os pardais, uns estarolas,
a fugir de entre os raminhos
entre gargalhadas loucas e fininhas
enganados pelo sol.

Virá a chuva, o frio, o vento, a neve,
os pássaros vão embrulhar-se quietos
junto aos ramos mais fortes, discretos
como folhas leves.

Ao longe, o comboio passa no horário certo.

Virá a neve, o gelo, virá a calma, o frio
os pardalitos pequenos
dispõem-se à beira do lago
em pose de mergulho, voam a rasar a água
ou equilibram-se numa folha a boiar
e agitam as asas em direcção ao céu.

Virá a neve, o gelo,
o sol, o degelo.

Ao longe, um sobressalto, o incerto, o inesperado
ao toque de um sino assustado.


Wednesday, January 07, 2015

A pedra

A pedra no meio do caminho
diz o poeta sem decidir o que fazer
A pedra no meio do passeio
Passo de um lado
de outro lado
salto por cima?
Dou-lhe um pontapé.

Ou deixo ficar a pedra quieta
no meio do passeio.
Depende do tamanho da pedra.