Sunday, July 21, 2013

Saudades




O calor intenso a canícula o cérebro parado o pensamento quieto o corpo inquieto revivem os espíritos dos meus mortos
sento-me nas escadas gastas em frente ao velho portão e espero a levada que há-de chegar em cachão terroso antes do meu avô que surge quase ao mesmo tempo chapéu de palha na cabeça e sachola ao ombro 
límpida a água depois as garotas de vestido fresco a brincar no líquido refrescante ao fim da tarde a mãe a ralhar que ainda se constipam 
a avó de lenço a cobrir os cabelos a fingir que ralha sai lá da cozinha térrea a enxugar as mãos
o calor tem outro sabor
os corpos frescos os pés nus os degraus gastos em frente ao portão antigo e as lágrimas a doerem das saudades

Sunday, April 28, 2013

Actor-poeta

O actor
levanta os olhos
enfrenta a plateia
cheia
procura o público.
O poeta que é actor
por amor
às palavras
baixa o olhar
a pensar
molda a voz
no coração
sopesa as sílabas
vê os significados
na alma
e diz os caminhos
marcados
desde a infância
a letras-tipos-móveis
o sentido propositado
posto na aventura
dos sentidos
a textura
do papel
o espelho da capa
na contracapa
os dedos suavemente
acariciam a face das palavras.

Friday, March 29, 2013

A minha Mãe

Chove.

A minha Mãe branca, fria, silenciosa, coberta de flores.

Chove.

O meu Pai arranca do coração gritos de pedra.

Chove.

Nós emudecemos de espanto da ausência

que entra pelos olhos dentro e nos cega.

O meu Pai recorre os passos da vida dele.

                                                da vida dela.

                                                da nossa vida.
Como uma via sacra.

Chove.

Chove. Ou não chove.

Quem passa, deixa palavras que mal se ouvem.

O meu Pai em solilóquios de dor não acredita.

Sabe que as pessoas chegam e partem

partilham o seu sofrimento

e ele percebe isso e fica incrédulo.

Parou de chover.

A minha Mãe esconde-se num buraco escavado no chão.

Cobriram-na de rosas vermelhas. Nós temos os olhos vermelhos.

Já não temos lágrimas.

Andamos por ali como sonâmbulos enlouquecidos.

A falar baixinho. Sem falar. A trocar tudo.

Aos abraços. A alma aos tropeções.

Chove.

A minha Mãe, branca, fria, coberta de flores.

Sempre que voltarmos de longe ou de perto,

se demorarmos muito ou pouco,

quando abrirmos a porta,

Ela já não vai estar lá, como sempre esteve, à nossa espera.

Chove. Outra vez.

Tuesday, February 26, 2013

Devagar que tenho pressa

não há pressa
não pode haver pressa
as coisas têm outra dimensão
fazer coisas passam a ter outro tempo
tomar banho é uma epopeia
requer ponderação
calçar uma meia
ou um sapato
é uma aventura
ir de um lado para outro lado
prolonga-se no relógio
o pensamento anda célere
não comanda o andamento
deixar entrar o sol
numa tarde fria de Inverno
reveste-se de raios de felicidade;
a rua fica cheia de vagares...

Saturday, February 23, 2013

Neve

o turista chegou numa manhã de neve

gelaram os gestos no alto do castelo
e o vento levou as palavras frias.








Thursday, January 17, 2013

Natal

Todas as pessoas partem um dia ou outro.
Algumas, quando nos deixam, já tinham partido há muito tempo
sem o saberem.

este natal de letra minúscula anda triste desorientado louco.
sem iluminações sem exuberâncias num moderado e lento
cântico de boas festas.